Reflexões Inquietas

Simoens da Silva, Przeworski e as crises da democracia: comentários e provocações (de José Luiz Conrado Vieira)

O autor deste artigo, José Luiz Conrado Vieira, é Doutor (1999) e Mestre (1993) na área de Direito Econômico, pela USP, tendo-se formado, primeiramente, em Física (USP, 1978) e, depois, em Direito (USP, 1984), seguindo-se especializações em Economia (FIPE/USP) e Finanças (ACREFI). É autor do livro A Integração Econômica Internacional na Era da Globalização: aspectos jurídicos, econômicos e políticos sob prismas conceitual e crítico (2004), e de capítulos ou artigos em livros, revistas, jornais etc. É analista aposentado do Banco Central do Brasil, onde atuou nas áreas de capitais estrangeiros, gestão das reservas internacionais, organismos internacionais e educação corporativa, tendo ocupado as funções de Consultor, Chefe Adjunto de Departamento e Gerente Técnico Regional. Como professor da área de pós-graduação do Insper foi, também, Conselheiro do LLM (Legal and Law Master) e integrante do Comitê Acadêmico. É membro do Gacint/IRI/USP.                                                                      

Este artigo, como consta do seu introito, tem como ponto de partida a abordagem feita por mim acerca do livro Crises da Democracia, de Adam Przeworski (2020), constante do artigo intitulado As democracias estão em crise?, datado de 24/03/2024 e publicado na seção “Um olhar para o mundo” deste site. Como explica José Luiz, sua ideia inicial era, apenas, tecer algumas observações acerca do meu artigo, destinadas à área do site disponível para comentários de leitores. Todavia, a extensão alcançada pelo texto acabou levando-o a convertê-lo neste artigo.

Assumindo como premissa que, realmente, diversas das atuais democracias estão passando por um período de turbulências e dificuldades que sugerem, de fato, uma crise desse sistema, o artigo traz diversas considerações acerca da longa evolução que levou os sistemas de governo da autocracia até a democracia representativa dos dias atuais, pautando-se, nessas análises, pelas grandes linhas do processo histórico e por uma perspectiva cíclica da História.

O artigo apresenta, também, uma forte crítica ao pensamento neoliberal, referindo-se não somente à financeirização, ao rentismo e à simplificação da realidade que produziu, mas também aos seus impactos negativos na formação acadêmica de, dentre outros, economistas, juristas e cientistas sociais, e na produção de uma visão empresarial que, guiada por resultados a curto prazo e “a qualquer custo”, apresenta pouco apreço pelas relações interpessoais (incluindo as trabalhistas) e dificuldade em lidar com a complexidade e a diversidade do mundo contemporâneo.

Após empregar o conceito de “abstração real”, adotado por Belluzo, Galípolo e Finelli, faz referência a questões contemporâneas do Brasil, desde a visão ortodoxa e conservadora que une o bolsonarismo e os farialimers, passando pelo projeto de poder vinculado ao movimento evangélico pentecostal no Brasil e pelo despreparo da elite econômica, de políticos e de líderes religiosos. Nessa linha, aborda, também, a questão da tecnologia da informação aplicada à produção sofisticada de fake news e deepfakes, com menções à redução da capacidade crítica das pessoas e à lavagem cerebral.

Em síntese, o autor considera que a democracia constitui um sistema ainda em evolução, cuja tendência é passar da forma atual, dita representativa, para a chamada democracia participativa, de modo que as crises que vem sofrendo representam, basicamente, fenômenos a serem superados dentro de uma perspectiva de evolução cíclica.

De qualquer modo, entende que, no curto e, possivelmente, também no médio prazo, a humanidade ou, pelo menos, uma extensa parcela dela tenderá a padecer ou, no mínimo, viver de sobressaltos sob o mal ou, quando menos, a ameaça dos extremismos.

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4 respostas

  1. José Luiz,
    Isolado no meu canto no Rio, mas me recusando a ficar velho e mantendo a chama dos que amam aprender, sou constantemente provocado pelas questões que envolvem as carências do povo brasileiro, entre elas as colocadas pelos textos do Luiz Afonso/Reflexões Inquietas, onde fiz o comentário que você mencionou. Sua abordagem traz profundidade aos aspectos centrais citados no texto.
    No meu comentário, fui instado a refutar a ideia que a Democracia seja algo tão frágil, que desapareceria como sólida construção da humanidade. Em comentário que fiz, fiquei com Larry Bartels em citação feita por Simoens da Silva, que acha exagerado o perigo de colapso das democracias.
    Citei o exemplo dos franceses, que sempre se apresentaram como legítimos defensores dos princípios da Revolução, mesmo diante da imensa dificuldade política no entorno de 1940, ocasião em que o partido comunista francês se aproximava do poder. Lembro que para muitos Hitler seria um libertador, daí o colaboracionismo com os nazistas não ter sido desprezível.
    Ontem, vendo uma palestra do Prof. Bresser, meu sempre professor também discorreu sobre sua dificuldade de ver a Democracia mortalmente abalada, entendendo que se trata de um momento passageiro.
    Eu, tenho a pretensão de separar o ambiente político em certos países como um problema Global. Alternância Esquerda/Direita/Centro tem sido a realidade das sociedades mais desenvolvidas ou em desenvolvimento, que continuam crescendo. Aduzo e acredito, que se correta que o Neoliberalismo fracassou, na cronologia da História ficará como um pequeno aborrecimento que esvairá.
    Uso para meu otimismo o momento em que você indica a crise da representatividade como causa da mudança para o desejo de mais participação, fazendo pensar que uma não implica na outra e que as vilanias presentes nas redes sociais irão refluir.
    No caso brasileiro, quando a esperança venceu o medo, a representatividade era a marca de nosso Congresso, de Severino Cavalcante a Roberto Freire, de Delfim ao avo do RCN a Genuíno.
    Vale dizer que, após a democratização, os interesses vulgares desmontaram a promissora estrutura tributária gestada na constituição de 1988, concentrando os recursos na União Federal e transformando os congressistas em “vereadores” como mencionado no seu texto.
    A propósito, registro o trabalho de Jaderson Goulart Jr, ” O Sistema Fiscal Chinês Hoje: TAX-SHARE SYSTEM”, que registra o percentual de 15% na participação do governo no gasto público total, cabendo o restante aos governos provinciais e subprovinciais. No texto há informações de como funciona o sistema de arrecadação e distribuição dos tributos, descentralização que surpreende.
    Na fase Reagan/Thatcher, potentes influenciadores ($$), vitaminados pelo fim da União Soviética, não há como ignorar os malefícios das práticas neoliberais, entre eles o notável enfraquecimento dos sindicatos e das lideranças políticas progressistas, juntando-se a eles a decisiva e rápida alteração do progresso tecnológico na matriz de produção, que se somou a relocalização industrial na Ásia , com destaque para a China.
    Adiciono como perturbadora a globalização financeira, que cresceu mais que o setor real da economia, agregando uma gestão burocrática voltada para o curto prazo, alavancada pela busca de Bônus crescentes por meio dos famosos CEO, ensina o Prof. Bresser.
    Com relação às igrejas neopentecostais, trago os argumentos de Bruno Paes Manso em “A FÉ E O FUZIL” – CRIME E RELIGIÃO NO BRASIL DO SÉCULO XXI”, associando seu crescimento à desesperança dos migrantes internos para as metrópoles brasileiras, que com a ausência de perenidade das políticas públicas e dissolução da classe política como agente de mudanças, presentes nas gerações anteriores – até 1980, submeteram-se a “pastores” inescrupulosos e milicianos “agregados” ao esquema formal de segurança.
    Por oportuno, trago uma reflexão de um jovem uzbeque, Londres 1996, que me disse para não me estressar com as mazelas do mundo, pois “O BEM SEMPRE VENCE O MAL”. SERÁ?
    Finalmente, percebo que os pensadores progressistas começam a ampliar uma visão mais influente e voltada para os mais jovens, usando as redes sociais. Bresser acha que os próprios empresários começam a notar que aderiram a uma proposta sem futuro e que o limitado Orçamento Federal não lhes dará alternativa que não uma mudança de paradigma, quem sabe direcionado para um PROJETO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO.

    1. José Luiz respondeu:
      Prezado Carlos Augusto, muito grato pelo seu comentário acerca do artigo. Como sempre, suas análises e observações valem por uma aula.
      Gostei muito das suas citações, a começar pelo trabalho sobre o sistema fiscal chinês (“Tax-Share System”), que me fez lembrar o livro do nosso amigo comum, Gilton Carneiro dos Santos (“China: da miséria ao topo”), que mostra detalhes interessantes (e surpreendentes) acerca do processo decisório estatal chinês e das especificidades do crescimento econômico daquele país. Pelo visto, é enorme a distância entre os dois sistemas de “partição federativa” de recursos públicos, o brasileiro e o chinês.
      Muito boa, também, a citação ao livro de Bruno Paes Manso (“A Fé e o Fuzil – crime e religião no Brasil do Século XXI”). A abordagem da expansão das igrejas neopentecostais, no Brasil, com esse recorte de vínculo ao fluxo migratório interno (marcado pela desesperança em face da deficiência em políticas públicas e da falta de respostas adequadas por parte da classe política), parece muito interessante.
      Quanto à análise do neoliberalismo e sua ascensão à condição de mainstream econômico, foram bem lembrados, por você, (a) o enfraquecimento dos sindicatos e das lideranças políticas progressistas, (b) o avanço rápido do progresso tecnológico sobre a matriz de produção e (c) a relocalização industrial ao redor do mundo, por vezes referida como “globalização produtiva”, que gerou um intenso deslocamento (parcial ou total) da produção e/ou de segmentos das cadeias produtivas em busca de redução de custos e, em alguns casos, de posicionamento estratégico.
      No que concerne à (como você disse) perturbadora globalização financeira, “que cresceu mais que o setor real da economia”, vale lembrar o livro “Moeda e Crise Econômica Global”, do nosso amigo Luiz Afonso Simoens da Silva, que ao falar da “financeirização” da riqueza destacou o conceito de “profundidade financeira” (empregado pelo McKinsey Global Institute) e outros elementos relevantes que corroboram essa afirmação.
      A propósito, quanto à sua observação no sentido de que, se correta a avaliação de que o neoliberalismo fracassou, “na cronologia da História [ele] ficará como um pequeno aborrecimento que esvairá”, digo que, igualmente, assim espero.
      No mais, compartilho do seu otimismo em relação ao futuro da democracia, com algumas reservas, todavia, em relação à reflexão daquele jovem uzbeque, em Londres, em 1996, que te disse para não se estressar com as mazelas do mundo, pois “o Bem sempre vence o Mal”. É que, para que isso aconteça, e à margem das conceituações de Bem e Mal, é preciso que haja “vigilância constante” e, principalmente, ação concreta por parte dos “homens de Bem”. O crescimento recente dos extremismos no mundo, aliás, mostra bem isso.
      Por fim, não poderia deixar de dizer que você faz muito bem em “se recusar” a ficar velho e em manter a “chama dos que amam aprender”, até porque você tem muito a (nos) dizer/ensinar, especialmente na linha das mudanças de paradigma em matéria de energia e da formulação de um (necessário) Projeto Nacional de Desenvolvimento compatível com a enorme potência (na ótica aristotélica de ato e potência) que este País detém e que me leva a compartilhar, também nesse caso, do seu otimismo.
      E por falar em idade, note que finalizei a minha resposta ao comentário do Luiz Afonso (a este mesmo artigo) com uma menção ao exemplo do Prof. Bresser-Pereira (também citado por você), que aos 90 anos segue firme e combativo, mostrando grande lucidez na senda da análise crítica da realidade.
      Um grande abraço.”

  2. Caro José Luiz,
    Gostei muito de seu artigo. Três observações, apenas para enfatizar.
    1. Ao criticar o neoliberalismo, você destacou a política de distribuição máxima de dividendos no curto prazo (lembrar o caso recente da Petrobras). Você usou a expressão ótica de portfólio em oposição a ótica tradicional de investimentos. Esse curtoprazismo do extremismo neoliberal trata como secundário tudo que tem a ver com desenvolvimento (longo prazo, projeto de país) e com políticas sociais (combate à pobreza, distribuição de renda). Perfeito.
    2. O “estrago” neoliberal, que passa pela simplificação da vida, contida no conceito de “abstração real”, seria o responsável pela piora das condições sociais dos estratos de renda baixa e de renda média. Bresser, como temos discutido entre amigos, acaba de publicar artigo que, como você, entende que a ideologia neoliberal dominou a academia norte-americana. A partir daí, ela aprisionou aos seus dogmas os países da América Latina e , também, da Europa, mas não os Estados Unidos. Vem daí sua ironia: “façam o que digo, não o que faço”.
    3. No final, você cita Bartels, que não vê grandes riscos de radicalização política de direita na Europa, apesar do recente caso de Portugal e, agora, da Alemanha (um antigo Estado da Alemanha Oriental acaba de votar pesadamente em um partido neonazista).
    Você fez bem em dizer que a Europa não é o Brasil. Não por acaso, um país como o nosso onde a democracia ainda é um conceito bastante frágil, se vê prisioneiro da fragmentação dos quadros políticos e da participação crescente de denominações religiosas.

    1. José Luiz respondeu:
      “Luiz Afonso, foi uma grande satisfação receber o seu comentário e, mais ainda, saber que você gostou do artigo. Aproveito para ressaltar que a sua ótima e oportuna análise do livro do Adam Przeworski facilitou muito a minha abordagem, abrindo espaço para as considerações e provocações que achei interessante oferecer ao debate.
      Quanto às suas três observações, nada tenho a acrescentar, senão saudar a nossa concordância em relação ao que chamei de “estrago” neoliberal.
      Com efeito, a meu ver a versão atual do neoliberalismo (plasmada no final do Séc. XX), com seu “financismo” exacerbado e aliado ao que você chamou de “curtoprazismo”, não só facilitou o “aprofundamento” materialista e individualista, sobretudo, nos estratos economicamente superiores da sociedade (cuja tendência à “secessão” em relação ao restante da sociedade e, no limite, ao País já é conhecida), como originou um “caldo de cultura” marcado por uma visão (como dito no artigo) “simplificadora” da realidade que, ao ignorar ou desprezar a complexidade e a diversidade do mundo contemporâneo, praticamente inviabiliza (ou, quando menos, dificulta bastante) o enfrentamento adequado (democrático) das principais mazelas sociais e naturais/ambientais que marcam a quadra atual da humanidade.
      Por fim, vale aqui uma especial referência (senão, também, reverência) ao Prof. Bresser-Pereira, que você em boa hora mencionou, visto que ele, do alto dos seus 90 anos, segue oferecendo, com grande lucidez, análises da maior importância para o necessário debate acerca dos contextos econômico, social e político no Brasil.”

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